Carlos Natálio: “Um bom filme é um filme que não tem respostas.”

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Carlos Natálio é investigador e docente da Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa e crítico de Cinema. Natural de Lisboa, é licenciado em Cinema e mestre e doutorado em Cultura Contemporânea e Novas Tecnologias. O Cinema está presente na sua vida desde cedo e para si um bom filme é “um filme que não tem respostas”. Através do Cinema é possível “conhecer melhor o mundo e as pessoas”. Um filme marcante? “O Sangue” (1989), de Pedro Costa.

 

O que é um bom filme?

É um filme que não tem respostas. É uma obra que, por mais anos que passem, nunca vai acabar de dizer aquilo que tem para dizer. Os bons filmes são aqueles que não são feitos para fechar, mas são feitos para abrir. São aqueles que nos deixam a pensar, que nos mostram que há sempre mais para explorar. Um filme que responde a tudo não permite essa abertura. Aqueles filmes que tentam ser demasiado racionais acabam por fechar todas as portas e isso, para mim, é menos interessante. Os maus filmes esgotam-se rapidamente, mas os bons filmes podem ser revisitados inúmeras vezes e continuam a ter algo novo para oferecer. É isso que define uma boa obra de arte: a sua capacidade de resistir ao tempo e de nos provocar sempre algo diferente.

 

É licenciado em Direito. Porquê estudar Direito?

Na altura da escola lembro-me de equacionar entre Direito e Comunicação Social. Fui influenciado pelos meus pais, principalmente pelo meu pai, que considerava a carreira de Direito mais segura. Comecei o curso até com algum interesse, porque as primeiras cadeiras eram mais teóricas e abordavam as fundações do Direito, a História, a Filosofia, as questões do justo e do injusto. Esta parte mais de cultura geral interessou-me muito. Foi precisamente quando o curso começou a ficar mais prático que eu comecei a perder o interesse e a perceber que talvez o meu caminho não fosse aquele. Quando terminei o curso, já tinha a certeza de que a minha vida profissional não passaria pelo Direito. Sempre fui mais ligado a questões imateriais, mais artísticas, e aquele universo não me cativava. 

 

O interesse pelo Cinema surge em que altura?

O Cinema sempre esteve presente. Mesmo antes da universidade, durante a infância e adolescência. Os videoclubes estavam em alta nos anos 80 e eu passava muito tempo a alugar e ver filmes. Tenho, também, memória de ver muitos filmes com a minha mãe. Quando comecei a ganhar alguma mobilidade, ia muito ao Cinema e na universidade, perante um curso que não me agradava muito, o Cinema foi uma grande companhia.

 

Valia faltar às aulas para ir ver filmes? (risos)  

Sim, claro (risos). Depois das aulas, enquanto os meus colegas ficavam a discutir as questões do Direito, eu ia para a Cinemateca. Havia duas sessões diárias, uma às seis e outra às nove e eu ia regularmente às duas. Lá pelas onze da noite, atravessava a cidade e apanhava o último autocarro de regresso para casa. Era um ritual.

 

Apesar de tudo, concluiu o curso de Direito…

Sim e até me cheguei a inscrever na Ordem dos Advogados, embora tenha cancelado a inscrição no mesmo dia (risos). Fiz a inscrição e, quando estava a voltar para casa, comecei a pensar: "Estiveste os últimos anos em esforço e agora vais inscrever-te numa coisa que vai exigir mais um ano e meio de esforço? Isto é masoquismo." Quando cheguei a casa, liguei para a Ordem e cancelei a inscrição.

 

Depois disso, seguiu os estudos em Cinema?

Sim, licenciei-me em Cinema na Escola Superior de Teatro e Cinema. Mais tarde, na Universidade Nova, faço o mestrado e depois o doutoramento na área da Cultura Contemporânea e Novas Tecnologias. Pelo caminho, fiz estágios na Cinemateca, na programação e produção, e também estive em Amsterdão a trabalhar na área da distribuição e produção. 

 

“O Cinema tem a capacidade de nos proporcionar experiências emocionais muito intensas.”

 

Qual é o impacto do Cinema em si?

Quanto mais filmes vejo, mais sinto que cresço como indivíduo. Não é só uma questão de escapar à realidade, é mais uma forma de conhecer melhor o mundo e os outros. O Cinema tem esse poder de nos ensinar sobre a vida, de nos fazer entender os outros, as suas emoções, os seus problemas. Isso é essencial para desenvolver a nossa capacidade de observação e, consequentemente, a nossa inteligência emocional.

 

Há várias formas de Arte. O que acha que distingue o Cinema?

O cinema é considerado uma arte "impura" porque convoca outras artes. Há quem diga que as outras artes vêm ao tribunal do Cinema para serem julgadas. O Cinema tem a capacidade de nos proporcionar experiências emocionais muito intensas. Por exemplo, ver um rosto do tamanho de uma parede é uma experiência difícil de explicar em palavras. Acho que essa é a particularidade do Cinema: ele é uma lente que usamos para olhar o mundo e as pessoas de uma forma única.

 

É um dos fundadores do À Pala de Walsh. Em que é que consiste o projeto?

O projeto começou, em 2012, com mais três colegas, todos ligados ao Cinema – alguns professores, outros programadores. O À Pala de Walsh é um site dedicado à crítica e à cinefilia. Na altura, estávamos a atravessar uma transição entre a crítica em papel e a crítica digital e fomos pioneiros ao tentar criar algo mais profundo, sem ser estritamente académico, mas, também, sem a rapidez e o cada vez menor espaço nos jornais para abordar criticamente o cinema. A ideia era criar um espaço onde se pudesse discutir o Cinema de forma mais elaborada.

 

“Os maus filmes esgotam-se rápido, mas os bons filmes são inesgotáveis.”

 

Está na Católica desde 2020. Como se dá a sua vinda para a Escola das Artes?

Candidatei-me a uma bolsa no Centro de Investigação em Ciência e Tecnologia das Artes e fui contratado como investigador doutorado. Comecei também a dar aulas nesse período. Passei um ano a fazer viagens entre Lisboa e Porto até decidir mudar-me para o Norte com a minha mulher, que é de Famalicão. 

 

O que tenta transmitir essencialmente aos seus alunos?

O que mais lhes quero passar é que, independentemente dos seus gostos pessoais, é importante manterem uma mente aberta. Nos primeiros anos, o que queremos é que os alunos vejam o maior número possível de coisas. A curiosidade é essencial. Podemos até não gostar de algo, mas é importante dar-lhe uma oportunidade e ver se isso nos toca de alguma forma. Esta é uma das principais preocupações que tenho, permitir que os alunos não fechem portas. 

 

Acha que ao teorizar sobre a Arte estamos a retirar liberdade ao espetador?

Acho que não. Mais informação é sempre melhor do que menos informação. As coisas não se devoram, acumulam-se. Claro que, se alguém ler um ensaio muito específico antes de ver um filme, pode ficar condicionado. Mas, no geral, não há versões certas na arte.

 

Acredita que cada pessoa cria o seu próprio filme ao assistir?

Cada espectador faz o seu próprio filme na sua cabeça. O realizador dá o seu olhar, mas na verdade, cada um de nós é que cria o seu filme. As perspetivas são sempre diferentes. Um crítico de Cinema, por exemplo, vai ter um olhar diferente de alguém que analisa o filme com um propósito científico. Por exemplo, um sociólogo pode querer explorar um determinado tópico. Os filmes prestam-se a serem observados através de diferentes filtros.

 

Não se esgota o potencial dos filmes?

Não, de forma alguma. Os maus filmes esgotam-se rápido, mas os bons filmes são inesgotáveis. É sempre possível, daqui a 50 anos, continuar a produzir discursos sobre eles. Um bom filme é aquele que não oferece respostas prontas. Não há manuais na arte, e o que define um bom filme é justamente a sua capacidade de nos fazer pensar, de não fechar todas as portas. Um filme que é demasiado preocupado com a lógica, onde tudo está "fechado", acaba por ser menos interessante.

 

“Quando vejo um filme com mais atenção aos detalhes, sinto que aprecio mais o filme.”

 

Vê filmes com papel e caneta para anotar ideias?

Depende do contexto. Por exemplo, se estiver a ver filmes para programar algum evento, como estou a fazer agora, não sinto tanta necessidade de tirar notas. Mas, se tenho de escrever sobre o filme, sim, tomo notas, mesmo que seja um processo às vezes meio estranho. Às vezes, no cinema, escrevo coisas que depois nem consigo entender, mas ajudam-me a fixar as ideias. As notas podem até não ser utilizadas no texto final, mas servem como um registo de pensamentos.

 

Acha que ver filmes com esse olhar mais técnico retira a espontaneidade da experiência?

Pelo contrário, eu acho que torna a experiência mais gratificante. Quando vejo um filme com mais atenção aos detalhes, sinto que aprecio mais o filme. Não me tira o prazer, antes pelo contrário.

 

No caso da crítica de Cinema, além das notas, também faz muita pesquisa?

Sim, principalmente para textos mais científicos, que envolvem mais leituras e notas. Na crítica, o que importa é o contacto direto com o filme, o contexto em que foi feito, o contexto da obra do realizador e, claro, o conteúdo do filme. Tecnicamente, tentamos perceber quais são os elementos mais interessantes e se o filme cumpre as suas intenções. 

 

Algum filme português que tenha sido especialmente marcante para si?

Há um filme de que gosto muito, até porque trabalhei bastante sobre ele, que é O Sangue, do Pedro Costa. É o primeiro filme dele, uma ficção a preto e branco, que conta a história de dois irmãos que têm de reaprender a viver depois do desaparecimento do pai. É um filme muito misterioso, onde o que aconteceu ao pai é um mistério. O filme fala sobre a relação entre a cidade e a periferia e o processo de crescimento dos dois jovens.

 

 

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21-10-2024