Ezequiel Coscueta: “Temos de ser artistas e criadores na Ciência.”
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Ezequiel Coscueta tem 37 anos, é argentino e é investigador do Centro de Biotecnologia e Química Fina, da Escola Superior de Biotecnologia da Universidade Católica Portuguesa. Aos oito anos, disse que ia ser cientista. E foi! Para além do gosto pela área, é um forte apaixonado pelas Artes: “A arte ajuda a ver mais além”. Sobre o CBQF, destaca a vocação para a complementaridade entre diferentes áreas de conhecimento e o foco na sustentabilidade. O que é que o desafia? “A sede de conhecimento”.
O que é que um artista e um cientista têm em comum?
Pensar e ver fora da caixa. Porque o artista tem de saber ver fora da caixa e tem de saber transmitir de uma maneira artística aquilo que vê e aquilo que sente. E a ciência consiste em perceber e transmitir aquilo que percebemos do universo. A arte ajuda a ver mais além, e esta visão criativa torna-se ferramenta para sermos disruptores; e também na Ciência temos de ser capazes de ver para lá do óbvio. Temos de ser artistas e criadores na Ciência. No fundo, a Ciência não é mais do que a arte de criar soluções inovadoras para os problemas do dia-a-dia, quer sejam problemas gerados pela necessidade quer sejam motivados pela vontade de encontrar explicações para o que (ainda) escapa o nosso entendimento.
Enquanto investigador na área das Ciências, é uma vantagem para si ter também uma forte ligação ao mundo das Artes?
Sempre senti como uma vantagem juntar essas duas dimensões. Na minha profissão, às vezes, tenho a necessidade de encontrar respostas para algumas questões de formas muito criativas. Sem este lado criativo teria muito mais dificuldade em chegar a determinados resultados. Diria que a Ciência “exige” este salto de criatividade quando se procura criar algo verdadeiramente novo e diferente do que já existe, não basta fazer tudo o que já foi feito, como sempre se fez e esperar algo diferente; é preciso imaginar algo diferente. E é nesse processo criativo que a mentalidade do artista é um motor do pensamento para a mudança.
“A Ciência e Arte partilham um terreno comum.”
Será que a Ciência está a perder essa capacidade de ser também artista, criadora e pensadora?
PhD significa “doutorado em filosofia”, mas, atualmente, perdeu-se um pouco este significado. Os cientistas perderam a parte filosófica. Acho importante resgatar isso porque os grandes cientistas antigamente eram também escritores, filósofos, pensadores, artistas. Hoje voltamo-nos muito para as métricas, para a urgência de obter resultados rápidos, por vezes à custa de não refletirmos sobre todos os ângulos daquilo que temos nas mãos. Não significa que os nossos resultados estejam errados! Mas podemos estar a perder a oportunidade de descobrir algo novo por não olharmos com um olhar mais crítico para o que estamos a fazer. A Ciência e Arte partilham um terreno comum: temos de ver para além do que está à nossa frente …
Que memórias tem da sua infância?
Sempre gostei muito de brincar. Sempre fui muito criativo. Nunca me aborrecia, porque encontrava sempre forma de estar entretido. Nem que fosse a destruir os brinquedos, para perceber como funcionavam (risos).
“A sustentabilidade está no centro de toda a nossa ação.”
De onde surge o gosto pela área científica?
Quando estava em casa da minha avó, via muitos documentários no Discovery Channel e da National Geographic. Eu era muito fã da natureza, da biologia, das ciências. Lembro-me que, ainda em criança, já tinha um fascínio grande por figuras como o Einstein. Aos oito anos disse que ia ser cientista. Apesar de ter muita ligação às Artes, assumi que artista era algo que podia ser toda a minha vida e, por isso, optei por ir estudar na área das Ciências.
Em 2014, larga a sua cidade natal - Santa Fe, no centro norte da Argentina – para vir para o Porto para um ano de investigação no Centro de Biotecnologia e Química Fina da Escola Superior de Biotecnologia da Universidade Católica Portuguesa.
Vim para a Católica para um projeto de investigação durante um ano. Na altura, tinha duas hipóteses: vir um ano ou para Portugal ou para Inglaterra. Como sou latino, vim atrás das pessoas quentes e de ter o mar perto. Nunca tinha saído da Argentina.
Mas já lá vão 10 anos…
Pois (risos). Desde o primeiro dia fiquei completamente rendido ao Porto.
No seu primeiro ano no CBQF em que projeto de investigação esteve envolvido?
Vim trabalhar para um projeto sobre a farinha de soja, uma vez que a soja tem alguns compostos que são anti nutrientes, que são tóxicos e, por isso, são prejudiciais para a nossa saúde. O objetivo do projeto era retirar esses compostos sem os destruir, mantendo uma boa qualidade da proteína que fica no que resta da farinha de soja, o chamado concentrado proteico de soja. O objetivo era também estudar de que forma podemos usar esses compostos noutras situações onde podem ser vantajosos, principalmente para a saúde. Estive um ano dedicado a isso e foi, inclusivamente, o meu projeto de doutoramento.
Depois desse ano regressa para a Argentina?
Regresso para continuar o meu doutoramento, cujo desenvolvimento prático foi partilhado entre a Universidad Nacional de Rosario, Argentina, e o CBQF. Durante os anos do doutoramento estive sempre entre cá e lá. Quando terminei o doutoramento, mudei-me definitivamente para o Porto, há já 6 anos. Sou investigador do Centro de Biotecnologia e Química Fina, integro o grupo Bioactives and Bioproducts Research.
É, também, investigador de um projeto próprio, o gBIOT. Em que é que consiste?
O gBIOT propõe uma tecnologia inovadora que poderá ser aplicada em nutracêuticos e alimentos com benefícios terapêuticos para o trato gastrointestinal, baseada em microrobótica. Apesar dos grandes avanços das últimas décadas, hoje a microrobótica ainda permanece inexplorada e longe de uma aplicação em contexto real. Os atuais sistemas de administração de medicamentos para a saúde gastrointestinal são limitados na sua eficácia e, muitas vezes, enfrentam desafios significativos para atingir as áreas-alvo do trato gastrointestinal. Com o gBiOT, estamos a criar micro-robôs biocompatíveis que podem identificar ativamente áreas inflamadas e libertar compostos bioativos naturais, fornecendo uma abordagem mais proativa e eficiente para o tratamento de distúrbios gastrointestinais. Os distúrbios gastrointestinais têm consequências de longo alcance, incluindo neoplasia e o cancro. O gBIOT aproveita os recentes avanços da nanotecnologia para aprimorar o desenvolvimento de produtos nutracêuticos e alimentícios saudáveis com ingredientes de micro-dimensão.
“Motiva-me muito a transmissão de conhecimento e a oportunidade que tenho de partilhar com os outros aquilo que sei.”
O que é que distingue a investigação que é feita no CBQF?
O CBQF é um centro de investigação de referência em Portugal. Às vezes, temos “a mania” de pensar que, como somos um centro de pequena/ média dimensão, em comparação com outros centros de investigação e universidades, o nosso trabalho também tem pouca dimensão, mas não é verdade. No ano passado, na área da biotecnologia agroalimentar, eu e outro investigador do CBQF ocupamos o primeiro lugar das categorias de Investigador auxiliar e Investigador júnior no Concurso Estímulo ao Emprego Científico Individual da FCT. Além disso, o Centro teve uma percentagem de sucesso acima da média nacional: isto tem de querer dizer alguma coisa sobre a qualidade da investigação e dos investigadores do CBQF.
Além disso, o CBQF está muito envolvido e comprometido com o tema da economia circular e da valorização de subprodutos. Queremos dar respostas e soluções à sociedade, no geral, e às empresas, no particular. Cruzamos diferentes áreas do conhecimento, o que é algo que aprecio muito e que me desafia imenso. Ultrapassamos as fronteiras que muitas vezes existem entre as diferentes áreas de conhecimento, acreditamos que as áreas são complementares. Ser investigador no mundo de hoje exige (ou deveria exigir) uma consciencialização constante para as questões ambientais - de que serve preocuparmo-nos com a saúde humana se descurarmos a saúde do planeta? A sustentabilidade está no centro de toda a nossa ação.
O que é que mais o desafia?
A sede de conhecimento, a sede de progredir e de sentir que estou a contribuir, de alguma forma, para revelar diferentes mistérios da natureza e, principalmente, ajudar cada vez mais a saúde. Motiva-me muito a transmissão de conhecimento e a oportunidade que tenho de partilhar com os outros aquilo que sei. É por isso que gosto tanto do trabalho que faço com os estudantes de mestrado e de doutoramento da ESB. O conhecimento não serve de nada se não for partilhado. Falar com os nossos “pares”, colegas e investigadores, é fácil; mas levar o conhecimento aos outros, à sociedade, às novas gerações, isso sim, é muitas vezes um grande desafio. De que serve o conhecimento se ficar apenas num pequeno grupo de elite?
Saudades da Argentina?
Saudades da minha família. Das pessoas. A Argentina é um país espetacular, mas o que fica sempre são as pessoas.
O que é que os portugueses e os argentinos têm em comum?
O sentido de família, as amizades, a relação próxima que existe entre as pessoas, a informalidade nas relações, o abraço fácil e, claro, o gosto pela boa comida.
05-09-2024