Gisela Ferreira: “A ESB ensinou-me a pensar de uma forma confiante e autossuficiente.”

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Gisela Ferreira é licenciada em Engenharia Alimentar pela Escola Superior de Biotecnologia, da Universidade Católica Portuguesa. Foi no âmbito da licenciatura que realizou um estágio nos Estados Unidos da América, país onde vive atualmente. Trabalha na AstraZeneca, onde é líder de grupo no departamento de Purificação, na área de biológicos. Lidera uma equipa diversa que ocupa funções de inovação técnica e desenvolvimento de estratégias. A ausência de rotina é o que mais a fascina na sua profissão. Com “cada vez mais saudades de Portugal”, afirma que o país deve olhar para si, não esquecendo as suas “tradições e calor humano”. O que é que a move? “Amizades genuínas e o desafio de fazer algo novo”.

 

Quais são as suas melhores memórias de infância?

Domingos! Esses eram os dias marcados por uma indumentária mais catita para ir à missa, um almoço com pratos especiais e com várias “etapas”, uma tarde entretida com alguma atividade ou uma visita a algum sítio, tempo em família, tartes de maçã ou de amendoim… e o sentido de tempo, com tempo (se faz sentido). E férias em Sesimbra com os meus tios e únicos primos da minha idade, com muita gargalhada e aventuras adolescentes. Saudades!

 

Porquê escolher estudar Engenharia Alimentar?

A minha entrada em Engenharia Alimentar foi um pouquinho tumultuosa. Coincidiu com a primeira vez que a prova geral de acesso foi implementada em Portugal, e muitas greves de professores, que atrasaram e confundiram a transição para o Ensino Superior. De início, pensei em seguir Engenharia Química, porque gostava de Matemática e Química. No entanto, não foi muito difícil sentir que Engenharia Alimentar se alinhava com os meus objetivos de carreira quando me informei sobre a licenciatura. Combinando com o prestígio, a reputação e a qualidade de ensino da Universidade Católica, a progressão foi quase orgânica. Lembro-me de começar o ano letivo e os meus colegas do ensino secundário estarem ainda incertos do futuro. Entretanto, estava já eu a ter aulas com professores fabulosos que me atraíram a ficar, mesmo quando fui aceite na Universidade pública. A previsibilidade, a segurança e estrutura do curso foram-me imediatamente evidentes. Todo o ambiente era obviamente estimulante – as pessoas, os temas, a diversidade das aulas, o edifício, as interações com colegas e professores, assim como o envolvimento na aprendizagem.

 

“Estudar Engenharia Alimentar na ESB ultrapassou o exercício de acabar cadeiras.”

 

Qual é a importância de ter estudado na Escola Superior de Biotecnologia?

Houve uma altura em que senti que literalmente vivia na Escola Superior de Biotecnologia. Vim a saber mais tarde que os trabalhos de casa que nos davam, assim como os trabalhos de grupo, intencionavam promover o vínculo à Escola. Olhando para trás, vejo que a experiência foi valiosa, porque me ensinou resiliência, determinação, trabalho de grupo, gestão de tempo, comunicação e camaradagem. Estudar Engenharia Alimentar na ESB ultrapassou o exercício de “acabar cadeiras”: foi uma experiência pessoal que me ensinou a sobreviver, a pensar e conceber estratégias na carreira futura.

 

Que características acha imprescindíveis para quem trabalha em Ciência e Investigação?

Serenidade e curiosidade. Serenidade para evitar sentir-se sobrecarregado com a quantidade, diversidade e progressão da informação científica. Curiosidade para continuar a aprender. Especificamente, como mulher e nos EUA, e talvez surpreendentemente, a serenidade é também importante para manter a linha de dignidade e calma num mundo ainda muito dominado por membros masculinos, principalmente em papéis de autoridade.

 

Quais são as memórias mais marcantes de ter estudado na Católica?

A ESB ensinou-me a pensar de uma forma confiante e autossuficiente. Ter feito o estágio foi também uma experiência única, que me viria a influenciar o resto da minha vida, já que aqui ainda estou. Na Católica tivemos para a maioria das cadeiras a oportunidade de aprender conceitos em aulas laboratoriais em que tínhamos disponível o equipamento mais atual à época. Se na altura achei que tivemos mais aulas destas do que preferia, agora valorizo intensamente esta oportunidade. O mais marcante de tudo deixei para o fim: as amizades que se criaram. Penso que a educação e atividades na Católica promoveram modelos sociais positivos e construtivos, que ajudaram a cimentar estas ligações pessoais.

 

Depois de terminada a licenciatura, começa logo a desenhar-se uma vida nos Estados Unidos da América…

O meu estágio de fim-de-ano foi em Baltimore, nos EUA. Quando acabei, o professor António Moreira, que pertencia à Direção da Escola Superior de Biotecnologia e era professor na UMBC, onde estagiei, propôs a ideia de eu voltar para um doutoramento. Curiosamente, até aquele momento nunca tinha pensado nessa opção, mas o convite fez-me pensar. Senti que era uma experiência que precisava de explorar. O programa académico, o ambiente americano perto de Washington DC, o despertar de uma vida mais independente, e o desenvolvimento de boas amizades mantiveram-me aqui. Confesso que houve um desafio sério na motivação quando o tempo se estendeu mais do que esperava. Mas acho que a preparação que a ESB me deu, me “seguraram” e me mantiveram focada. Ao fim de aproximadamente 6 anos, a graduação aconteceu e tive então a oportunidade de trabalhar numa empresa em Nova Jersey. Um plano que antecipava ser de 1 ano, transformou-se numa vida aqui, já por quase 30 anos.

 

“O período mais desafiante foi ver o “sangue e lágrimas” que estava a ser investido no projeto.”

 

Trabalha na AstraZenena. Em que consiste a sua função?

Quando vim para a AstraZeneca fui adotando responsabilidades relacionadas com projetos incrementalmente mais maduros no seu ciclo de desenvolvimento. O processo incluiu a participação e liderança de várias equipas e a preparação de submissões de documentos para o lançamento comercial de medicamentos como o Imfinzi e Fasenra. Neste momento sou um dos líderes de grupo no departamento de Purificação, na parte de biológicos da AstraZeneca. Tenho uma equipa sobre a qual tenho responsabilidades de gestão direta. É uma equipa diversa e que adoro, com especialidades, personalidades e ascendências diferentes: Americana, Chinesa, Suíça, Indiana e Iraniana. O meu papel tem incluídas responsabilidades de inovação técnica, desenvolvimento de estratégias nas formas como trabalhamos e liderança de equipas de CMC (Chemistry, Manufacturing and Controls). Este último papel é particularmente interessante – é uma oportunidade de gerir todas as funções que são necessárias para trazer um composto terapêutico a estudos clínicos, incluindo a manufatura, logística e aspetos de regulamentação. É o equivalente a sermos CEOs do nosso próprio projeto e influenciarmos o seu desenvolvimento através de várias áreas funcionais. Simultaneamente, tenho a exposição a parte de desenvolvimento clínico e médico. Sendo uma empresa internacional, frequentemente tenho múltiplos membros da equipa em outras partes de globo, nomeadamente Inglaterra e Suécia, o que cria também oportunidades únicas. É fascinante ver quantos elementos se consolidam para iniciar ou progredir uma terapia em estudos clínicos. Estar perto da FDA (cerca de 15 km) oferece também a vantagem de ter acesso a diversas conferências e seminários com acesso facilitado a apresentadores.

 

A Astrazeneca ficou na boca do mundo por causa da pandemia da Covid-19. Como é que descreve esse período?

A Astrazeneca não tinha a tradição de ser produtora de vacinas e ter que aprender e implementar tanto e em tão pouco tempo foi um desafio. Contudo, todas as prioridades e recursos foram concentrados na produção de terapias que pudessem ajudar o Mundo a prevenir ou a mitigar os sintomas da Covid-19. Essa estratégia facilitou a rapidez do desenvolvimento da vacina e anticorpos. Apesar de ter sido um período difícil, foi também um período de aprendizagem e experimentação com novas maneiras de trabalhar. Por natureza, a indústria farmacêutica tende a ser muito cautelosa, por razões óbvias já que erros podem incorrer em danos humanos irreparáveis. A pandemia imprimiu uma confiança renovada na organização, na realização do seu conhecimento, no que consegue e na maturidade da preparação para outra potencial situação de crise. Não é por acidente que a importância de “prior knowledge”, ao lado de “machine learning” sejam áreas com possibilidades renovadas. A participação no desenvolvimento da vacina foi limitada a um grupo específico de indivíduos que tinham maior conhecimento de elementos do projeto e outros que asseguraram as interações com organizações de manufatura por contrato (CMOs) a volta do Mundo. A minha participação foi periférica, mas testemunhei colegas que trabalharam incessantemente, sem fins-de-semana, por meses a fio, para garantir o sucesso e a eficácia da vacina. Na minha perceção, a vacina foi infelizmente influenciada por elementos políticos da época que dominaram o nível e a clareza da informação. A interpretação da pandemia, a evolução do vírus, a comunicação da eficácia das vacinas e estatísticas requereram um entendimento que não era linear e portanto difícil de processar pelos meios sociais e público em geral. O período mais desafiante foi ver o “sangue e lágrimas” que estava a ser investido no projeto, e a catarata de informação confusa e frequentemente parcial que era lançada ao público. Foi preciso muita resiliência, determinação e dedicação nesse período para o esforço se manter focado. 

 

O que é que mais a fascina na área em que trabalha?

A falta de rotina. Quando entrevisto candidatos que me perguntam como posso descrever um dia de trabalho típico, respondo sempre com um sorriso, porque “típico” não é uma palavra que posso usar ou que sei descrever no meu ambiente de trabalho. Obviamente há atividades regulares, reuniões ou certos documentos que são precisos, mas o que me fascina e me aterroriza ao mesmo tempo é a dicotomia de produzir terapias seguras e eficazes, mas utilizando uma grande variedade de técnicas e estratégias. Como cada terapia tem as suas próprias características e plano clínico, cada caso é um caso. A multiplicidade de outputs, a fluidez e a natureza competitiva da indústria biofarmacêutica, com a progressão cada vez mais rápida da integração de conhecimentos de biologia, engenharia, estatística, logística e regulamentos resultam num ambiente constantemente estimulador. Em conclusão, o desafio constante e o trabalho fabuloso que as equipas conseguem alcançar (quando são coesas e partilham uma visão comum) são os elementos que me fascinam na minha área de trabalho.

 

“Convido Portugal a olhar para si e não esquecer as suas tradições e o seu calor humano.”

 

Quais são os principais desafios de quem trabalha na área da Ciência?

Manter-se atual e focado. O conhecimento científico está a progredir cada vez mais rápido e mais integrado com outras áreas científicas. Flexibilidade e visão, o que é, de certa forma, contraditório com a ideia de “especialidade”, são talentos de alto valor. Pessoalmente, o aceitar a falta de conhecimento e manter a mentalidade de “pupilo”, apesar dos anos de carreira, são chave para poder evoluir e experimentar realidades fascinantes, assim como exercer funções de autoridade num ambiente incrementalmente multidisciplinar. Uma outra dimensão que verifico ser extremamente importante e menos obvia para cientistas: a capacidade de comunicar e motivar, com confiança e entusiasmo.

 

Vive no estado de Maryland. O que é que mais gosta na vida que tem nos EUA?

Vivo agora muito perto de Gaithersburg. O que gosto muito na vida aqui é a oferta de experiências – museus, embaixadas, vinhas, música, espetáculos, a cultura de “can-do”, o nível geral de informação e preparação académica nesta área, a enorme diversidade social e com esta diversidade surge também a diversidade também de gastronomia étnica. Apesar de haver muitas coisas que aprecio nos EUA, sinto imensas, e cada vez mais, saudades de Portugal – a nossa música, a nossa melancolia, o nosso sentido de amizade, origem e família. A cidade onde estou é dominada por cadeias de lojas e restaurantes. Tenho muitas saudades das “lojas do Sr. José”, das padarias com pão quente, onde existe ainda a interação humana. Os EUA têm muita coisa boa e bonita, mas convido Portugal a olhar para si e não esquecer as suas tradições e o seu calor humano.

 

O que é que a move na vida?

Amizades genuínas, o desafio de fazer algo novo e impactante e contribuir positivamente na vida de uma ou várias pessoas.

 

 

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07-09-2023