Carla Felizardo: “Todos os objetos artísticos têm uma mensagem e uma história e estes elementos podem ser tão ou mais importantes que a sua leitura estética.”

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É docente da Escola das Artes e coordenadora do Centro de Conservação e Restauro (CCR), um centro de transferência de conhecimento e tecnologia. Chama-se Carla Felizardo e foi num encontro com uma pintura de Hieronymus Bosch que descobriu a sua paixão pela arte e o seu fascínio pelo passado. Nasceu e cresceu em Ílhavo, mais tarde foi estudar para Tomar e, posteriormente, no seu encontro com a Escola das Artes, vem para o Porto. Nesta entrevista, conta-nos a descoberta da Conservação e Restauro, o seu percurso de crescimento e afirmação e alguns dos projetos mais desafiantes.

 

Como é que se sente em ambiente de oficina?  

Sinto-me numa bolha de tranquilidade, que é algo que eu não sinto a fazer muitas outras coisas. Estar numa oficina, focada numa peça, é um privilégio. Desligo-me dos telefonemas e dos e-mails e invade-me uma imensa tranquilidade.

 

“Quando eu vi pela primeira vez as Tentações de Santo Antão, de Hieronymus Bosch, fiquei totalmente deslumbrada e fascinada.”

 

Como é que começou a sua ligação com o mundo da arte?

Eu sempre gostei mais das letras. O que eu gostava na escola era do português, da história e mais tarde da sociologia. Não sentia o apelo das artes, nunca me senti minimamente capacitada para ter um percurso artístico e da minha família nunca recebi esse estímulo. Mas houve um momento de viragem que despertou a minha atenção para o mundo da arte. Foi numa visita de estudo ao Museu Nacional de Arte Antiga. Quando eu vi pela primeira vez as Tentações de Santo Antão, de Bosch, fiquei totalmente deslumbrada e fascinada. Tanto é que a visita de estudo continuou e eu fiquei em frente ao quadro, sentada num banquinho que lá havia. Aquilo mexeu muito comigo e lembro-me de pensar para mim como é que foi possível alguém fazer aquela pintura no século XV. Ainda hoje, quando vou ao Museu Nacional de Arte Antiga, não consigo passar pela pintura sem ficar a olhá-la pelo menos uns 30 minutos. Este meu primeiro encontro com esta pintura fez-me perceber o fascínio que eu tinha pelo passado, fascínio este que já estava muito presente nos livros que eu lia e nos filmes que eu via.

 

Deixou Ílhavo, em Aveiro, para ir estudar Conservação e Restauro em Tomar. Como é que surgiu esta opção na sua vida?

Apesar de eu ter frequentado o secundário na área das Económico-Sociais e de haver alguma pressão por parte da minha família para seguir um curso mais tradicional, eu sabia que não queria nada daquilo, mas também não sabia bem o que escolher. Lembro-me que peguei no Guia de Acesso ao Ensino Superior e me pus a explorar que opções que tinha.  Acabei por me candidatar em primeiro lugar a Psicologia, em Coimbra, pelo interesse que tinha pelo funcionamento da mente humana e até pela empatia que sentia em relação aos outros, e, em segundo lugar, a Conservação e Restauro, no Instituto Politécnico de Tomar. É engraçado, porque eu já tinha ouvido falar em Conservação e Restauro, mas de uma forma muito vaga e, por isso, havia todo um mundo para descobrir.

 

Acabou por ficar muitos anos em Tomar …

Sim, acabei por ficar durante 15 anos em Tomar. Foi nesta cidade que me formei, foi onde, também, conheci o meu marido e onde fui mãe. Só saí de Tomar quando o meu primeiro filho tinha cerca de um ano e meio. É uma cidade pequena, muito bonita e fascinante. Está repleta de elementos muito interessantes e é muito rica em património. Toda a cidade respira a história do Convento de Cristo.

 

A Conservação e Restauro acabou por ser uma surpresa para si?

Foi surpreendente, porque eu não estava à espera de gostar tanto. Pintura e escultura foram as duas áreas que me fascinaram mais e depois lembrava-me do episódio com a pintura do Bosch e comecei a perceber que as coisas faziam sentido. Só quando comecei com a prática da Conservação e Restauro é que percebi que era algo que podia estar ao meu alcance, porque mesmo em criança nunca fui muito dada aos trabalhos manuais e às artes. Foi um gosto totalmente adquirido, que hoje me preenche imensamente.  

 

“Os primeiros anos na Católica foram verdadeiros anos de afirmação.”



Quando é que o seu caminho se cruza com a Escola das Artes?

Há uma altura em que decido sair de Tomar. Quando terminei o curso comecei logo a colaborar em aulas práticas e à medida que o tempo foi passando fui conseguindo a minha estabilidade. Eu dava aulas práticas e, em simultâneo, trabalhava na oficina. Foram anos de muita aprendizagem e crescimento e de muito boas memórias. Em meados de 2005, regresso com o meu marido e com o meu primeiro filho a Aveiro. Tinha decidido que iria trabalhar por conta própria e que precisava de um novo desafio, porque acreditava que me ia ajudar a descobrir profissionalmente. Quando apresentei a minha demissão em Tomar toda a gente ficou surpreendida. É tramado não querer uma coisa que à partida toda a gente quer e eu tinha um bom lugar, tinha um bom contrato e tinha uma estabilidade que muitos procuram e que me fez crescer imenso. Mas eu precisava de algo diferente. Posteriormente, é em Aveiro que monto o meu atelier em casa e que recebo, logo e praticamente no imediato, 5 pinturas para restaurar. O engraçado desta história é que eram 5 pinturas de Hélène de Beauvoir, irmã da Simone de Beauvoir, doadas à Universidade de Aveiro. Já tinha as 5 pinturas em minha casa quando recebo um telefonema de uma amiga a dizer-me que a Católica no Porto estava à procura de alguém para dinamizar o Centro de Conservação e Restauro. A vaga interessou-me, porque eu não queria seguir apenas a carreira académica. Ainda hoje aquilo que me faz mesmo feliz é estar na oficina. Acabei por ser selecionada e confesso que fiquei um bocadinho desconcertada. Tinha acabado de chegar a Aveiro e tinha 5 pinturas para restaurar (risos).


Quando é que surge a possibilidade de dar aulas?

Convidaram-me para dar aulas de História, Teoria e Deontologia do Restauro. Tirarem-me da oficina é tirarem-me o meu elemento. Escusado será dizer que eu estava nervosíssima na primeira aula. Era a primeira vez que eu ia lecionar uma disciplina teórica, porque até aí eu só tinha dinamizado aulas práticas. Lembro-me que não dormi nada na noite anterior (risos)! Mas é curioso porque foi aqui na Católica que aconteceu um fenómeno interessante. Se os anos em Tomar foram anos de crescimento e amadurecimento, aqui na Católica os primeiros anos foram verdadeiros anos de afirmação. Descobri coisas em mim que não sabia que tinha. Deixei-me surpreender por aptidões que nem sabia que existiam em mim.  

 

“Estamos a construir pontes para que a Conservação e Restauro não se feche numa cápsula do tempo e para que o CCR seja um terreno prático das investigações.”  

 

De que forma é que o trabalho como coordenadora do CCR foi tão desafiante e estimulante nesses primeiros anos?

De repente, eu estava no mercado a ver potenciais trabalhos, a fazer orçamentos, a compreender o custo dos materiais, a gerir equipas, a desmontar altares, a carregar pinturas, esculturas, a assegurar a coordenação das obras e a orientação técnica e, no terreno, a angariar novos projetos e a explicar às pessoas a importância do nosso trabalho.

 

Mas, atualmente, o CCR tem uma visão um bocadinho diferente. Já não se dedica, exclusivamente, ao fornecimento de serviços para o exterior.  

Em 2017, a direção da Escola das Artes muda e com ela altera-se também a visão e o propósito do CCR. Deixamos de ser um centro só virado para o exterior e dedicado, praticamente em exclusivo, ao fornecimento de serviços para fora e passamos a ligá-lo muito mais à missão da escola e aos alunos, que são a nossa prioridade. Atualmente, assumimo-nos como um centro de transferência de conhecimento e tecnologia. É nossa prioridade manter esta ligação com a comunidade e possibilitar o desenvolvimento de projetos que possam ser relevantes objetos de estudo e de investigação. Somos um centro que proporciona aos alunos oficinas abertas para que eles possam vir trabalhar não só nas peças de aula, mas também noutras intervenções, e mantemos, também, alguns protocolos com algumas instituições, como Serralves, o Centro de Arte Oliva e a Santa Casa da Misericórdia. Para além disto, queremos promover cada vez mais a ligação entre a Conservação e Restauro e a área do Som e Imagem e do Cinema. Estamos a construir pontes para que a Conservação e Restauro não se feche numa cápsula do tempo e para que o CCR seja um terreno prático das investigações que são desenvolvidas.  

 

Quais são as características indispensáveis de um conservador-restaurador?  

Sentido crítico, primeiramente. É essencial que tenha uma grande capacidade de reflexão e, também, a autoconfiança suficiente para tomar decisões justificáveis. O profissional, também, nunca pode perder o receio e o respeito pela peça que tem à sua frente. Não podemos deixar que o nosso receio nos impeça de avançar, mas ele também é importante, porque nos vai mostrar que não podemos fazer mais do que aquilo que devemos e mais do que aquilo que é necessário. Encontrar este equilíbrio não é fácil.  

 

Ainda há muitos equívocos sobre a Conservação e Restauro em Portugal?  

Sim, e essa é uma questão muito complexa. Todos os objetos artísticos têm uma mensagem e uma história e estes elementos podem ser tão ou mais importantes que a sua leitura estética. Há muitas pessoas que acham que uma peça restaurada tem de parecer nova. Isto é absolutamente contraditório relativamente àquilo que nós ensinamos e queremos praticar. Há que respeitar a passagem do tempo e a nossa política é sempre a de intervir o mínimo possível. A isto chamamos o Princípio da Intervenção Mínima, que é uma das nossas regras. Regras estas que orientam aquilo que deve ser o trabalho de um Conservador-Restaurador. As outras são o respeito pelo original, em caso algum devemos retirar material original da peça; a reversibilidade, todas as operações de conservação e restauro têm de ser reversíveis, porque a uma dada altura pode surgir uma melhor solução; a compatibilidade entre os materiais, daí a importância do lado científico da formação; e, por último, a regra da diferenciação da intervenção, ou seja, toda a intervenção deve ser facilmente discernível e não se deve fingir que não houve restauro. A nossa intenção é fazer um restauro respeitoso que integre e que permita uma leitura unitária da obra e nunca devemos criar um “falso histórico”. A orientação por estas regras evitaria muitos dos equívocos que ainda persistem no mundo da Conservação e Restauro.

 

“Aqui vive-se um ambiente muito dinâmico, cheio de possibilidades, onde se cruzam áreas diferentes e onde os alunos se sentem muito estimulados.”

 

De que forma é que o ensino da Conservação e Restauro na Escola das Artes se distingue?  

O que nos distingue é o equilíbrio entre a vertente prática e a vertente científica. Não nos podemos focar em exclusivo na parte prática, mas, também, não nos podemos cingir apenas e só à análise e ao diagnóstico. O equilíbrio que conseguimos aqui na Escola das Artes distingue-nos claramente. Para além disso, também, trabalhamos para oferecer aos nossos estudantes uma experiência rica que vai muito para além das aulas. Aqui vive-se um ambiente muito dinâmico, cheio de possibilidades, onde se cruzam áreas diferentes e onde os alunos se sentem muito estimulados. A Escola das Artes é um sítio especial.  

 

Há algumas intervenções que recorde de forma especial?  

São muitas, mas consigo identificar duas muito marcantes por motivos diferentes. Uma delas foi trabalhar na requalificação da Sé de Santarém. A Sé tinha um espólio muito grande e em 2013 resolveu montar um museu diocesano, aproveitando a requalificação do edifício da Sé. Foi um privilégio trabalhar num projeto tão bem pensado e organizado. O espólio artístico foi dividido em diferentes lotes e nós ficamos com um muito interessante para o qual acho que éramos muito capacitados. Foi um trabalho maravilhoso, não só porque as peças eram muito boas, mas, também, porque possibilitou o envolvimento de muitas pessoas, o estudo científico de todas as obras, a produção com o devido tempo de todos os relatórios e uma interação grande entre o corpo docente e o Centro de Conservação e Restauro. O resultado foi fantástico e a recuperação ganhou o Prémio Europa Nostra.  

Outro projeto que nos marcou muito foi a recuperação do espólio desportivo do Futebol Clube do Porto para o seu museu. O projeto foi marcante não pelo espólio em si, mas porque tratámos quase 600 peças em três meses: taças de metal, bandeiras, fotografias, documentos, equipamentos de jogadores, chuteiras, uma bicicleta, entre outros. Talvez o facto de na equipa do projeto sermos todos portistas tenha ajudado (risos). Foi um desafio inesperado e irresistível, uma verdadeira loucura.  

 

“Sou sempre mais feliz com os outros.”

 

Se pudesse um dia intervir numa obra de arte qual escolheria?  

Desde aquele encontro no Museu Nacional de Arte Antiga que continuo fascinada por Bosch. Seria um enorme privilégio poder trabalhar em qualquer pintura dele.

 

O que é que a move na sua vida?  

Profissionalmente e pessoalmente, sou uma conciliadora por natureza e por isso, em tudo o que faço, não consigo evitar a empatia. Sou sempre mais feliz com os outros. No meu trabalho, move-me o dinamismo, a proatividade, o espírito de equipa e a transparência. Em privado, valorizo muito o sentido de humor e rir é sempre muito importante, quer das coisas que correm bem, quer das coisas que correm menos bem. Talvez tenha sido um dos melhores elogios que ouvi quando alguém me disse que “quem não souber acha que na vida nunca te aconteceu nada de mal”.

 

 

pt
19-05-2022