Maria Isabel Tavares: “A Universidade é muito mais do que a sala de aula.”

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Maria Isabel Tavares é natural do Porto e é docente e investigadora da Escola do Porto da Faculdade de Direito da Universidade Católica. Foi, também, na Católica que fez o seu percurso académico e dele destaca a excelência dos professores e o ambiente dinâmico de diálogo e de debate. “O Direito não resolve o mundo, mas o que seria de um conflito sem o Direito?” é o que a move. Filha mais nova de seis irmãos, sonhava com o Jornalismo e com as Relações Internacionais. Mais tarde, na licenciatura, apareceu o Direito Internacional: “Foi determinante”. Nos tempos livres? Ir ao Dragão, ler e jogar sudokus. Uma memória marcante em viagem? “Sobrevoar Bagdade.”

 

É alumna de Direito da Universidade Católica no Porto. Como é que foram os seus anos de licenciatura?

O primeiro e o segundo ano não foram fáceis, devo admitir. Durante o curso (como penso na vida em geral) não tem de ser tudo perfeito e ótimo - é um percurso. Lembro-me, inclusivamente, de ter tido uma importante conversa com uma das minhas irmãs que me ajudou a perceber que era importante continuar a empenhar-me ainda que não estivesse propriamente animada com o curso e que, no fundo, não haveria problema algum se no final decidisse que este não era o caminho. O importante era ter a consciência tranquila, de que não estava a autossabotar o meu percurso e que a decisão que viesse a tomar seria totalmente consciente. Entretanto, acabei por me cruzar com o Direito Internacional e, esse momento, foi determinante. Foi nessa área que consegui imaginar uma profissão para a minha vida.

 

O que é que a entusiasmava no Direito Internacional?

Era esta ideia de vermos o ‘outro’ de forma muito diversa. Aquilo que estava a estudar era igual ao que era estudado noutras partes do mundo, sob perspetivas, histórias, culturas completamente diferentes. No Direito Internacional, cumpria o objetivo de ter um impacto global mesmo se atuasse a um nível local. A uma dada altura, durante a licenciatura, fiz uma oral de subida de nota e o professor permitia-nos escolher um tema. Escolhi falar sobre o Afeganistão, os Talibã e as violações de direitos humanos. Passado algum tempo, em 2001, dá-se o ataque às Torres Gémeas. Lembro-me que tinha estudado o assunto e, de repente, via a história a acontecer à minha frente.

 

Que recordações guarda dos tempos de grande entusiasmo com o Internacional?

A uma dada altura, ainda estudante, comecei a trabalhar no Gabinete de Estudos Internacionais, que era, até ser fechado, a parte da biblioteca da Católica que reunia a bibliografia sobre Direito Internacional. Nós, os estudantes, assegurávamos a abertura do gabinete a quem queria consultar as publicações, e esses momentos foram de grande debate de ideias. Foram tempos importantes, organizavam-se muitas conferências e havia muitas discussões em torno dos assuntos que mais me interessavam. Como a licenciatura em Direito só tinha duas cadeiras de Direito Internacional, acabei por continuar a estudar esta área ao longo do curso por minha conta. A vontade era muita e havia um espaço de discussão livre e qualificada muito estimulante. Este ambiente foi decisivo para mim e para o meu percurso.

 

“[Da infância] guardo memórias muito felizes (…) de um espaco de liberdade e responsabilidade na família”

 

Mas chegou a querer ser repórter de guerra …

Quando andava ainda na escola gostava de Jornalismo e de Relações internacionais. Já em pequenina simulava entrevistas. Lembro-me de uma cassete que, infelizmente, entretanto se perdeu em arrumações, onde simulava uma entrevista a Jonas Savimbi. O Direito surgiu com a ideia de que era um curso de banda larga que me daria uma boa formação de base e depois poderia fazer o que quisesse. 

 

O que é que mais marcou a sua infância?

Sou a mais nova de seis irmãos e penso que esse facto determinou o meu percurso. A diversidade, o interesse genuíno uns pelos outros, a curiosidade, a adaptabilidade e tolerância era algo “vivido” numa casa com tanta gente, muitas conversas e diferentes interesses. Guardo memórias muito felizes e aos meus pais só posso agradecer o espaço de liberdade e responsabilidade que cultivaram na nossa família.

 

“Aquilo que me move é o estudo a partir do caso concreto e da realidade.”

 

Como é que a carreira académica surge no seu caminho?

Apesar do Direito ser um curso de banda larga, havia sempre alguma pressão para seguir um percurso mais convencional, mas acabei por resistir. Sabia que queria ter uma profissão que me permitisse estudar e refletir. Depois da licenciatura, acabei por ingressar no mestrado da Católica e, um ano mais tarde, começar a dar aulas. Quando comecei a dar aulas, apercebi-me que o meu fascínio passava, também, pela própria relação com os estudantes e pela possibilidade de participar num processo dinâmico. Não gosto muito da ideia de ensinar de forma estanque, prefiro lançar perguntas e de em conjunto encontrar respostas.

 

É mais de perguntas do que de respostas?

A Universidade é isso mesmo. O que seria da Universidade só com respostas? Respeitando o passado e a tradição, não podemos nunca perder a capacidade de nos questionarmos constantemente e de nos espantarmos com o conhecimento. A minha grande preocupação com os meus alunos é que tenham capacidade de colocar questões e que cada um seja capaz de refletir e de encontrar por si as respostas.

 

Enquanto antiga aluna da Universidade Católica, o que é que mais a marcou durante o seu percurso?

O que mais me marcou foram os professores de excelência que proporcionaram um ambiente de muita exigência, rigor e desafio. Destaco, também, as pessoas com quem me cruzei e as amizades muito sólidas que fiz aqui. E, claro, o ambiente muito dinâmico que a Católica proporciona. Acabei por me envolver na Associação de Estudantes, na ELSA (European Law Students’ Association), na organização de conferências e debates. A Universidade é, de facto, muito mais do que a sala de aula.

 

Qual foi o tema da sua tese de Doutoramento?

A minha tese de doutoramento é o estudo de caso da guerra do Iraque em 2003. Curiosamente, passaram agora 20 anos do início da guerra. A escolha do tema acabou por ser natural. Durante a licenciatura comecei a interessar-me pelo direito internacional humanitário que é o direito dos conflitos armados. Era uma matéria que me interessava muito, a par, também, da questão da responsabilidade internacional e do uso da força. São temas estruturais. Por outro lado, esta ideia do estudo de caso também teve particular importância, porque aquilo que, realmente, me move é o estudo a partir do caso concreto e da realidade. Aí sim, a partir da realidade chamar o Direito e compreender que regimes se aplicam e como é que se resolvem as questões.

 

“O Direito não resolve o mundo, mas o que seria de um conflito sem o Direito?”

 

Estudar o Direito em ação com a realidade …

Precisamente. Na nossa Faculdade de Direito é a abordagem que adotamos. Não basta haver um conjunto de teorias, é preciso que haja uma verdadeira preocupação e um olhar atento para com o que está a acontecer. O livro Regimes Jurídicos Internacionais, coordenado pelo Professor Azeredo Lopes e editado na casa, retrata muito bem a visão que nós temos do Direito Internacional. O livro é constituído por 2 volumes. O primeiro aborda a teoria e o segundo é de “Questões, casos e materiais”. Fomos buscar resoluções do Conselho de Segurança, decisões do Tribunal Internacional de Justiça, comunicados dos diferentes Estados, discursos em fora internacionais, entre outros. O que realmente nos interessa é desenvolver a capacidade para estar atento e ler o que está a acontecer no mundo.
Esse é também um elemento que temos muito presente no International Studies Programme. Aí, nomeadamente pela presença de professores e estudantes estrangeiros, somos confrontados com leituras diferentes, experiências distintas, culturas diversas. A internacionalização acontece nesse diálogo com o ‘outro’.

 

Que impacto é que a Guerra na Ucrânia tem tido nos estudantes?

Como já referi, como estudante, ao “viver” o 11 de Setembro, a invasão do Afeganistão e depois do Iraque, senti que aquilo que estava a estudar se relacionava diretamente com o que estava a acontecer no mundo. Penso que, atualmente, com a Guerra na Ucrânia, o mesmo se passa. Os estudantes também sentem essa proximidade e um maior envolvimento e interesse. É difícil sermos indiferentes a um conflito desta natureza, tão próximo e que tem um impacto sensível no nosso dia a dia.

 

Ao longo do seu percurso, que experiências internacionais destaca?

Fiz alguns cursos de Direito Internacional Humanitário, um deles em San Remo, em Genebra. Frequentei, também, a Academia de Direito Internacional da Haia. Foi uma experiência fantástica. Eu era muito nova, tinha sede de aprender direito internacional, e de repente estive algumas semanas num ambiente, com pessoas de todo o Mundo, onde só se falava e se respirava Direito Internacional. No edifício do Tribunal Internacional de Justiça. Com acesso a uma Biblioteca ímpar para um internacionalista. Já no Doutoramento, estive no Max Planck Institut, em Heidelberg, num período de investigação. Foi determinante estar concentrada na minha investigação. Ao lado de outros investigadores nas mesmas circunstâncias. Discutíamos, debatíamos, ajudávamo-nos.

 

“Sobrevoar Bagdade (…) foi muitoemocionante”

 

Estudar Direito Internacional pode ser inquietante?

Sem dúvida, há uma grande inquietação humana ao estudar estas questões. Estudar a guerra mexe comigo e nem sempre é fácil, principalmente porque as vidas profissional e pessoal comunicam entre si e, por isso, nem sempre consigo (ou quero) desligar-me das matérias que estudo. Lembro-me bem, quando comecei a estudar o Direito Internacional Humanitário, de me confrontar com o facto de este ramo do direito aceitar a guerra como um facto e procurar regular a condução das hostilidades. Isto significa aceitar que pode haver gente que morre numa guerra. No início, tudo isto levantou em mim uma grande discussão interior e até uma reflexão ética, filosófica e espiritual. O Direito não resolve o mundo, mas o que seria de um conflito sem o Direito? Hoje em dia, claro, já lido de outra forma, mas são sempre temas que causam algum desassossego. Há dias melhores e dias piores.

 

O que é que mais gosta de fazer nos seus tempos livres?

Ir ao Estádio do Dragão ver os jogos. É um momento que me permite desligar de tudo (risos). Gosto muito de ler, ver filmes e de poesia. O meu lado mais nerd leva-me a gostar muito de sudokus.

 

Viagem favorita?

Visitar o Iraque foi muito marcante por motivos óbvios. Sobrevoar Bagdade e estar naquele local foi muito emocionante. Também me marcou muito uma viagem a Berlim. Eu acho que Berlim é uma cidade que nos diz muito hoje, há naquela cidade uma confluência daquilo que somos enquanto sociedade, resultado de um grande processo de evolução. É uma cidade muito efervescente artisticamente, há sempre coisas a acontecer. É muito mais do que a capital da Alemanha. Nesta viagem, parece que descobri, de alguma forma, a minha identidade enquanto pessoa que pertence a uma comunidade europeia, geográfica e muito mais do que geográfica.

 

pt
30-03-2023