Daniel Ribas: “As obras de arte têm a capacidade de nos confrontar com o mundo.”

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Daniel Ribas é docente e investigador da Escola das Artes. Foi nesta mesma Escola que começou o seu percurso universitário, onde integrou a primeira turma da licenciatura em Som e Imagem (1997-2002). Coordenador do Mestrado e da Licenciatura em Cinema, dedica-se ao estudo e à investigação do cinema português, que caracteriza como sendo “ambicioso” e “entusiasmante”. Verdadeiramente apaixonado por livros e filmes, confessa que o que o move é a “infindável capacidade de poder saber e conhecer coisas novas.” Nesta entrevista, Daniel Ribas fala-nos sobre o seu primeiro sonho de ser jornalista, sobre algumas das suas referências, sobre o quão diferenciador é estudar na Escola das Artes e ainda partilha a sugestão de dois imperdíveis filmes.

 

O que é que mais gostava de fazer durante a sua infância e adolescência?

Eu era um miúdo fanático por futebol e, por isso, jogava horas a fio e eram tardes sempre muito felizes! Um bocadinho mais velho, comecei a ter um gosto especial pela imprensa e fazia pequenos jornais em casa, fazia relatos de futebol para a rádio e punha-me a escrever. Na adolescência, ocupava grande parte do meu tempo a ler jornais.

 

Na altura, havia alguma pessoa que fosse uma referência para si?

Eu adorava ler um intelectual que escreveu muitos anos no Público que era o Eduardo Prado Coelho. Para mim, é uma grande referência porque escrevia sobre tudo, de temas mais sofisticados, à telenovela e ao futebol. Também nesta área da escrita, o meu avô é uma referência para mim. Nunca o cheguei a conhecer, chamava-se Manuel Ribas e era jornalista. Eu tinha um fascínio muito grande em ver fotografias dele no jornal. Apesar de eu não ser Ribas de último nome, optei por usá-lo porque era o nome do meu avô. Quis manter esta ligação pelo gosto da escrita que partilhamos…

 

Também pensou em ser jornalista …

Sim, o lado da escrita, da leitura e da literatura fizeram-me sonhar com a profissão de jornalista. Na altura, os dois melhores cursos nesta área eram em Lisboa e em Coimbra. Acabei por entrar em Braga e não fiquei muito satisfeito com esta possibilidade e soube que estava a abrir o curso de Som e Imagem na Católica no Porto e no plano de estudos havia a oportunidade de fazer uma especialização em escrita de argumento. Como eu já tinha um interesse imenso pelo cinema, a possibilidade deste curso fez todo o sentido para mim. Nele conseguia aliar o cinema ao meu gosto pela escrita.

 

“As obras de arte têm a capacidade de nos confrontar com o mundo.”

 

Que memórias tem dos seus anos de licenciatura na Escola das Artes?

Havia um espírito muito grande de novidade porque era o primeiro ano do curso. Tudo estava a acontecer pela primeira vez! Uma das coisas que mais me marcou foi o termos tido muitos professores americanos que vinham para cá e com quem aprendíamos imenso. Ensinavam-nos a olhar para o cinema de uma forma mais profunda e mais teórica e, talvez, tenha sido isso que acabou por influenciar o meu percurso. Na altura, com um dos professores (o Van Watson), aconteceu uma coisa que eu achava impossível que foi termos uma cadeira onde passamos o semestre inteiro a ver filmes do Alfred Hitchcock e a falar sobre eles.

 

Começou com um grande interesse pela literatura e o cinema aparece depois. Como é que surge este interesse na sua vida?

Quando chego ao secundário, na Escola Carolina Michaelis, no Porto, encontro-me com pessoas com gostos diferentes dos meus que acabaram por me influenciar. Nessa altura, o Porto era uma cidade com muitos cinemas de bairro e eu comecei a frequentar esses lugares. Comecei a ver muito cinema e a ver coisas diferentes daquelas que davam na televisão.

 

“Aqui encontramos alunos, verdadeiramente, apaixonados pelo seu trabalho.”

 

Ora quando lê um livro, ora quando assiste a um filme: o que é que procura?

Procuro algo novo. Procuro algum elemento que de alguma forma me possa emocionar e esse elemento pode ser uma história, pode ser a maneira como a história está contada, pode ser a maneira como as personagens estão construídas ou até um lugar especial. Tudo isto acontece ou num filme ou num livro. As obras de arte têm a capacidade de nos confrontar com o mundo e de nos desafiar a ver o mundo de uma maneira diferente.

 

Que ambiente é que se vive na Escola das Artes?

A Escola das Artes tem um ambiente bastante relaxado e descontraído, aliado a uma grande paixão por aquilo que se faz. Isso é essencial. Aqui encontramos alunos, verdadeiramente, apaixonados pelo seu trabalho e isso significa que as suas obras artísticas são também resultado da sua intimidade. A relação e o ambiente que se vive cá dentro proporciona uma proximidade e uma partilha muito grande entre os professores e os alunos. Aprendem-se e discutem-se as práticas artísticas e existe uma agenda cultural muito intensa. O ambiente é de constante curiosidade e vontade de saber mais.

 

“Estudar Cinema na Escola das Artes faz-nos entender o cinema de uma forma muito mais abrangente e ampla.”

 

Será que as pessoas têm, hoje em dia, mais acesso a uma vasta cultura cinematográfica?

Diria que não, porque apesar de haver uma oferta grande de serviços de streaming, o mercado está organizado de maneira a que se concentre muito em determinado tipo de filmes. Mesmo nas plataformas de streaming, e apesar da variedade do material que disponibilizam, a verdade é que a maneira como navegamos nos serviços nos leva sempre para o mesmo tipo de cinema. Há, também, uma barreira enorme com a língua e, confesso, que nunca percebi muito bem o porquê de isso existir. Existe a ideia de que os filmes que são em inglês é que são bons… claro que isto faz com que as pessoas acabem por não ver filmes noutras línguas e a sua cultura cinematográfica sai, consideravelmente, afetada.

 

É coordenador do Mestrado em Cinema. O que é que se faz de diferente na Escola das Artes?

Quando criamos o mestrado em cinema tivemos, inevitavelmente, de ter em conta o universo das escolas de cinema que já existem. Foi a partir daí que começámos a desenhar um programa diferenciador. Aquilo que, essencialmente, nos distingue é o facto de colocarmos o cinema num campo mais artístico e experimental e isso significa que o nosso curso tanto pode dar origem a obras para uma sala de cinema clássica, como para uma sala de exposições. Estudar cinema na Escola das Artes faz-nos entender o cinema de uma forma muito mais abrangente e ampla. Queremos que dentro do cinema haja um campo variado de possibilidades. A forma como ensinamos, também, é diferenciadora, porque tem por base o desenvolvimento de projetos. No caso concreto do mestrado, os estudantes, para além das unidades curriculares que frequentam durante o 1º ano, estão durante dois anos a trabalhar num projeto. Os alunos, durante este tempo, são desafiados a experimentar e a pesquisar formas de fazer cinema. É uma experimentação muito individual que vai conduzir a uma obra artística no final do mestrado que passa a ser uma parte decisiva do portefólio do aluno e que pode começar também a circular em festivais de cinema ou galerias de arte.

 

“Estou imerso em cinema português há quinze anos.”

 

O que é que o cativa na investigação e qual é a sua principal área de estudo?

Diria que, provavelmente, é a possibilidade de olhar para as coisas, refletir sobre elas, cruzar a teoria com o cinema. Esta dimensão de ler textos e perceber que eles nos ajudam a compreender um conjunto de filmes é mesmo entusiasmante. Aquilo que me interessa realmente é o estudo da contemporaneidade. Exploro aquilo que está a ser feito agora na área do cinema A minha tese de doutoramento foi sobre um realizador português (João Canijo) e acabei por interagir com muitas pessoas nesta área e, por isso, posso dizer que o cinema português é a minha grande área de especialização. Estou imerso em cinema português há quinze anos (risos). Tenho-me dedicado a descobrir o que é o cinema português, não só através dos filmes que produzimos, como através de toda a dinâmica envolvida no cinema português enquanto indústria.

 

Temos bom cinema em Portugal?

O cinema português é, provavelmente, um dos cinemas mais entusiasmantes do cinema contemporâneo. Curiosamente, é um cinema muito internacionalizado, os nossos filmes atravessam o mundo e são muito conhecidos fora de Portugal, principalmente aqueles que são mais artísticos e que saem fora das convenções. Tenho uma ideia muito positiva do cinema português contemporâneo e é um cinema muito ambicioso.

 

Cinema português contemporâneo: há algum filme que o tenha marcado especialmente?

Há dois filmes que gostei particularmente nos últimos tempos. O primeiro é o “Sangue do meu sangue” do João Canijo. É um filme que se propõe a contar muito bem uma história, mas, também, faz uso de uma estética capaz de contar um quotidiano bastante banal das pessoas e ao mesmo tempo mostrar como, apesar de acharmos que somos uma sociedade muito pacífica, somos também uma sociedade muito violenta. Há muita violência subterrânea e este filme espelha essa realidade. Num registo mais fantasioso, gostei muito do “Tabu” de Miguel Gomes. O filme passa-se em dois tempos: no tempo contemporâneo e nos anos sessenta em África. O filme foi todo filmado em película e tem em simultâneo o prazer da ficção e o prazer estético. É absolutamente maravilhoso em termos visuais.

 

Um estudante ou um profissional da área do cinema revê os filmes muitas vezes? Tira notas durante os filmes?

Nós vemos bastantes filmes em aula até porque os alunos têm que ter essa experiência de sentir o filme e o momento de visualização tem de ser sagrado. Não podem ver um filme enquanto mandam mensagens ou enquanto estão a fazer múltiplas tarefas. Para além disto, aconselho-os a visualizarem o filme com um caderno ao lado para poderem ir tirando algumas notas. Não precisam de ser extensas, têm como função ajudar a recordar alguns momentos-chave. Para além disto, quem estuda cinema facilmente percebe que ao se ver o filme apenas uma vez, não se consegue captar tudo. Na primeira vez sente-se o filme, percebe-se a história e alguns dos seus elementos, mas é impossível compreender todas as camadas e toda a complexidade.

 

“O que me move é esta infindável capacidade de saber e conhecer coisas novas.”

 

O que é que o move?

Uma das coisas que é mais importante para mim é a capacidade que o ser humano tem de apreender conhecimento. Conhecimento este que é infinito, não é? O que me move é esta infindável capacidade de saber e conhecer coisas novas. Uma das forças motrizes da minha vida é saber que ainda não vi muitos filmes, não li muitos livros e há tantas pessoas que eu nunca ouvi falar. É esta imensidão de coisas que eu possa um dia vir a saber que me move e que me desafia.  

 

 

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31-03-2022