Alexandra Carneiro: “Temos de continuar a trabalhar na desconstrução do tabu da saúde mental”

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Foi no meio da natureza que cresceu e foi através da forma como se relacionava com os seus amigos que descobriu que a Psicologia era a sua vocação. Alumni da Católica, Alexandra Carneiro é docente e investigadora da Faculdade de Educação e Psicologia (FEP), sendo, também, a atual coordenadora da Clínica Universitária de Psicologia (CUP) e membro da equipa de coordenação da Licenciatura em Psicologia. Verdadeiramente feliz na sua profissão, garante que a “vontade em saber mais” e a “humildade” são as características essenciais de um bom investigador! Nesta entrevista, fala-nos da sua infância, da sua missão profissional na FEP e da importância da saúde mental.

 

Como é que acha que se desconstrói o tabu que existe à volta da saúde mental?

Estamos no bom caminho, porque hoje em dia acho que existe um bocadinho menos esse tabu. Embora seja inegável que ainda há muito para desconstruir e para capacitar. As pessoas ainda são muito rotuladas pelo facto de terem consultas de psicologia e/ou de psiquiatria.  Julgo que se as pessoas partilhassem mais esta questão tudo se normalizava. Tratarmos da nossa saúde mental tem de ser uma coisa normal! É, por isso, importante dar-se voz a este tema que faz parte da vida de todos. Enquanto profissionais desta área, temos de continuar a trabalhar nesta desconstrução e nesta consciencialização. Importa, também, referir que os serviços de saúde são muito caros e isto acaba por ser uma enorme limitação. Há muito caminho para fazer neste sentido.

 

É a coordenadora da Clínica Universitária de Psicologia. Qual é a sua principal missão?

A Clínica Universitária de Psicologia integra um serviço de consulta psicológica: consulta psicológica individual, com crianças, jovens, adultos, online, presencial, avaliações psicológicas, entre outros. É, também, um local de recolha de dados, ou seja, um local de investigação. A sua missão é muito abrangente e muito importante. Para além do importante serviço social que presta, fornece muitos casos práticos para as aulas, através das transcrições de entrevistas ou de informações relativas à avaliação psicológica para os nossos alunos trabalharem. Nós fazemos o atendimento à comunidade em geral, à comunidade da Católica no Porto, com exceção da comunidade do curso de Psicologia. É, também, através do trabalho na CUP que damos relevância e importância às questões da saúde, que são tão essenciais e tão necessárias.

 

Quais são as características essenciais de um bom psicólogo?

Um psicólogo deve ser um bom ouvinte e um bom ouvinte não é apenas quem sabe ouvir, mas é a pessoa que está, efetivamente e inteiramente, lá para apoiar e compreender a pessoa. Outra característica importante é a empatia, no sentido de compreender o impacto que todas as questões têm na pessoa e para poder pensar na avaliação e na intervenção mais adequada. Aliado a isto é muito importante a ponderação e a sensibilidade. É importante ser-se ponderado para que se consiga compreender até onde é que a pessoa está disposta a partilhar. Às vezes, as pessoas têm um conjunto de sintomas e é algo na sua vida que está a provocar isso, embora nem sempre estejam dispostas a falar sobre o problema central, porque apenas estão preparadas para falar dos sintomas. Os psicólogos têm de perceber que as pessoas precisam do seu tempo e que, muitas vezes, precisam de explorar muito bem esses sintomas todos para que a pessoa comece a perceber que tem que ir um bocadinho mais fundo.

 

Como é que se ensina isso aos alunos?

Não é fácil. Uma das coisas que nós estamos sempre a dizer aos nossos alunos é que não é possível fazer a licenciatura em psicologia sem que se tenha contacto com os outros. A relação é essencial. Como é que se compreende o ser humano sem se conviver com ele? São, verdadeiramente, importantes as visitas de estudo, os trabalhos de grupo, o serviço comunitário. Tentamos proporcionar aos nossos estudantes contacto com os outros para que estejam expostos a situações práticas e reais. Fomentamos o relacionamento entre todos para que desenvolvam o respeito e a empatia. Para além disto, nada como o poder do exemplo. Enquanto docente, quero ser um exemplo para os meus alunos. Um exemplo de compreensão, de disponibilidade, de dedicação, de empatia, de respeito. Não podemos estar a falar com um aluno, que está a tirar dúvidas connosco, enquanto estamos sempre a olhar para o relógio. Se o fizermos, vamos estar a mostrar-lhes que não estamos verdadeiramente disponíveis. É através do bom exemplo e das nossas ações que lhes vamos dando a descobrir como é que se é um bom psicólogo.

 

Dentro da Psicologia o que é que mais gosta de investigar?

Dentro da Psicologia o que mais gosto é a área da avaliação psicológica. A avaliação psicológica permite-nos conhecer melhor as pessoas e os problemas, bem como permite, também, devolver às pessoas os resultados dessa avaliação. O estudo da avaliação psicológica começou com a minha dissertação de mestrado.  No primeiro ano, nós tínhamos que escolher um tema e eu escolhi a avaliação do temperamento em crianças dos 24 aos 30 meses. Isto está intimamente ligado com outro tema que eu estudo que é a monitorização da intervenção psicológica com crianças e jovens. Também neste tema é essencial ir-se avaliando à medida que vamos intervindo para percebermos o impacto da intervenção que está a ser levada a cabo. A avaliação ao longo do processo vai permitir conhecer os ganhos que estão a ser alcançados, ou se, entretanto, até surgiram outras questões na vida da pessoa que obrigam a uma nova ponderação e avaliação para podermos reconduzir a intervenção.  Estas duas áreas são muito próximas e tenho por elas um especial interesse.

 

Como é que definiria um bom investigador?

Um bom investigador deverá ser alguém que tenha não só curiosidade, mas vontade de saber mais. Às vezes temos curiosidade, mas acabamos por não sair do sítio.  Só com real vontade é que acabamos por fazer alguma coisa. A humildade é, também, uma característica importante de um bom investigador. Devemos ter a humildade de perceber que a nossa contribuição é sempre pequena, porque a partir dali há mais coisas que se podem fazer e descobrir. A investigação é sempre uma pequena grande contribuição na medida em que do nosso trabalho nascerão novas ideias, novos conhecimentos, novas possibilidades.

 

“Falo-lhes dos projetos em que eu participo na expectativa de os contagiar e de lhes despertar curiosidade.”

 

Como é que se contagia os alunos para a investigação?

Isso é um trabalho muito difícil, porque os alunos olham para a investigação como algo muito denso e muito complicado. O que eu faço para contornar esta ideia é partilhar nas minhas aulas dados empíricos que os façam perceber que a investigação tem aplicabilidade. Quero que os meus alunos percebam que a investigação tem, realmente, impacto na prática e é assim que eu os tento seduzir. Incentivo-os a participarem em projetos de investigação. Falo-lhes dos projetos em que eu participo na expectativa de os contagiar e de lhes despertar curiosidade. 

 

Quando é que surgiu o interesse pela Psicologia na sua vida?

O interesse pela Psicologia surgiu mais ou menos entre o 9º e o 10º ano. Eu tinha um gosto especial por ajudar as pessoas à minha volta e por ouvi-las. Na altura, apercebi-me de que os meus amigos me procuravam muito para falarem comigo. Foi isto que me fez pensar: porque não Psicologia? Eu era muito boa ouvinte e isso é uma característica importante dos psicólogos. Na escola onde eu andei havia uma equipa de três psicólogas. Ninguém gostava de ir sozinho ao psicólogo, éramos adolescentes, não é? Muitas vezes quando os adolescentes vão à procura de ajuda não querem ir sozinhos e eu recordo-me de ter sido o apoio de duas ou três amigas que quiseram falar com a psicóloga. Numa das situações, até me foi pedido para entrar para a sala onde estavam a conversar porque a minha amiga me tinha referenciado por eu gostar muito de ajudar os outros.

 

“Vim para o Porto no primeiro ano da faculdade e fiz parte do primeiro ano de Psicologia na Católica!”

 

Acha que essa sua capacidade de ser uma boa ouvinte veio de onde?

Nós somos três irmãs, eu sou a mais nova, e ainda fazemos uma diferença bastante grande. Isto fez com que eu acabasse por crescer num mundo de adultos. As pessoas que me rodeavam eram todas mais velhas. Isto acabou por me influenciar bastante. Cresci num ambiente onde as conversas eram mais sérias e onde havia sempre pessoas a partilharem histórias que eu adorava ouvir.

 

Para além disso, em criança brincou muito ao ar livre …

Nasci em Santo Tirso, depois os primeiros três anos da minha vida foram passados em Guimarães e depois mudamo-nos para uma freguesia que fica entre Guimarães e Santo Tirso. Acabei por crescer nesta freguesia que é muito rural e que tem um ambiente pequeno e fechado, mas a experiência foi muito boa. Brincava com os animais, cuidava dos animais, fazia bolinhos de terra e andava pelo meio da horta. Os meus pais tinham uma empresa têxtil e por isso, também, acabei por passar muito tempo por lá. Foi uma infância muito livre, com muito espaço para brincar ao ar livre.

 

Quando é que vem para o Porto?

Quando termino o 12º soube que queria uma mudança na minha vida e essa mudança passava por sair de casa e por conhecer pessoas novas.  Durante o 12º ano, lembro-me, perfeitamente, que estava a ter aula de latim e a minha professora de filosofia bateu à porta para me avisar que ia abrir Psicologia na Católica no Porto. Vim para o Porto no primeiro ano da faculdade e fiz parte do primeiro ano de Psicologia na Católica!

 

“O serviço comunitário ajuda os nossos estudantes a perceberem que um psicólogo não trabalha apenas dentro de um gabinete, um psicólogo vai para o meio das pessoas, um psicólogo vai ouvir as pessoas, um psicólogo quer relacionar-se.”

 

Quais eram as suas expectativas?

Em primeiro lugar, eu tinha a certeza de que estava a estudar uma área que, realmente, queria. O entusiasmo era muito. Gostei muito do primeiro ano e lembro-me que tive logo ideias de querer trabalhar na área da justiça e do comportamento desviante. Na altura, a investigação nem me passava pela cabeça! No segundo ano, os professores começaram a convidar-nos para alguns projetos de investigação e foi aí que começou o meu interesse. O meu gosto pela investigação residia na possibilidade não só de aprender, como, também, de contribuir para que alguém pudesse aprender.

 

Em que é que considera que estudar Psicologia na Católica é diferente de estudar noutras universidade?

Atualmente sou docente, mas, também, já fui aluna e por isso posso afirmar que desde o início da licenciatura na Católica a essência não mudou. A proximidade entre os professores e os alunos é muito grande. Há uma grande disponibilidade da parte dos professores em ajudarem os alunos e em esclarecerem as suas dúvidas. Esta proximidade e esta disponibilidade que são nossas características não podem ser confundidas com falta de exigência, porque a exigência também nos caracteriza e nos define. É através da exigência e do rigor que motivamos os nossos estudantes a quererem ser sempre melhores. O serviço comunitário é algo que, também, nos distingue. Através do serviço comunitário, os nossos estudantes colocam-se ao serviço dos outros, aprendem a ser socialmente responsáveis e, muitas vezes, acabam por atuar em áreas onde um psicólogo pode vir a trabalhar no futuro. O serviço comunitário ajuda os nossos estudantes a perceberem que um psicólogo não trabalha apenas dentro de um gabinete, um psicólogo vai para o meio das pessoas, um psicólogo vai ouvir as pessoas, um psicólogo quer relacionar-se.

 

“Como é que se compreende o ser humano sem se conviver com ele? São, verdadeiramente, importantes as visitas de estudo, os trabalhos de grupo, o serviço comunitário.”

 

Quais são os seus desejos para os próximos tempos?

Desejo que a nossa vida se aproxime um bocadinho mais daquilo que era, que este ano nos traga mais oportunidades de encontro entre todos. Desejo, também, ter novos desafios de investigação e de ser capaz de continuar a contribuir para a formação dos meus alunos, que serão os meus futuros colegas. Para além disto, gostava imenso de fazer uma viagem. Já não faço há muito tempo e confesso que tenho muitas saudades. No fundo, todos queremos um bocadinho mais de liberdade, não é?

 

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17-02-2022