Marta Correia: “A Nutrição é, provavelmente, a área com maior potencial de promover a saúde de forma sustentável e eficaz.”

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Chama-se Marta Correia e é a atual coordenadora da licenciatura em Ciências da Nutrição da Escola Superior de Biotecnologia. Docente e investigadora por paixão, assume-se como uma curiosa que não se satisfaz. É na investigação que “com criatividade” consegue dar resposta às questões científicas e é na docência que partilha conhecimento e que se sente desafiada pelos seus estudantes. É mãe, gosta muito de ler, de música e de cinema e é, também, praticante de Iyengar ioga. Prato favorito? Comidas tipicamente mediterrânicas como ovos escalfados com ervilhas. Nesta entrevista, Marta Correia fala-nos sobre o seu percurso profissional, sobre a importância da alimentação e o longo caminho que ainda há a percorrer rumo a uma alimentação mais saudável e sustentável.

 

É verdade que “somos aquilo que comemos”?

Claro que sim. A nutrição e a dieta interagem com o nosso potencial genético, influenciando a saúde, e também os nossos hábitos de sono, a nossa performance física e as nossas emoções. O nosso potencial de nos concretizarmos em corpo, em órgãos, em ações e em crescimento celular depende muito dos nutrientes que comemos e, por isso, não há dúvida alguma de que a Nutrição ocupa um papel muito especial.

 

Qual é o seu prato favorito?

Ervilhas com ovos escalfados e favas estufadas com coentros (risos). Gosto muito de comer e estas são as minhas comidas favoritas, são pratos muito mediterrânicos.

 

“A nutrição está na interface de inúmeras outras áreas, a nutrição é esta linguagem que se fala em todos os sítios.”

 

Porquê a escolha de estudar Ciências da Nutrição?

Quando escolhi estudar Ciências da Nutrição, não tinha sequer perceção deste mundo imenso. Estamos a falar da década de 90 e, por isso, refiro-me a tempos muito diferentes dos de hoje em dia. Quando ingressei na faculdade, eu não tinha qualquer expetativa nem conhecimento sobre o que era a Nutrição. Candidatei-me a este curso porque achei que era interessante e porque tinha a ver com saúde. Estava longe de imaginar o mundo que me esperava. Felizmente vim aqui parar porque a área das Ciências da Nutrição é provavelmente a área da saúde com maior potencial de promover a saúde de forma sustentável e eficaz.

 

O que é que mais a fascina nesta área?

Sou totalmente apaixonada por esta área em termos científicos e é por isso que estou na área da investigação e da docência. O que me move é a minha vontade em querer compreender os mecanismos pelos quais a dieta, os nutrientes e outras moléculas que existem nos alimentos conseguem promover a saúde. Coisas tão simples como modelar a inflamação, impedir aumento da pressão arterial ou uma tiroide que não funciona bem. Há uma esfera de ação que é muito maior do que aquela que as pessoas pensam e que consiste numa oportunidade de sermos agentes da nossa própria saúde. A partir do momento em que sentimos este empoderamento enquanto cidadãos, esta área torna-se imensamente fascinante. A nutrição está na interface de inúmeras outras áreas, a nutrição é esta linguagem que se fala em todos os sítios. É isto que me apaixona.

 

“Sou muito curiosa! Tenho uma curiosidade que não se satisfaz.”

 

Será que quando era mais nova já algo indiciava que seria por aqui o seu caminho?

Aprendi com a minha família a importância do momento da refeição. Não tanto o requinte ou a sofisticação da ementa, mas o momento de convívio e o momento de trazer para a mesa o nosso passado gastronómico. Eu nasci e cresci em Lisboa, mas tenho raízes Algarvias. A minha mãe e a minha avó, as mulheres da família, foram quem mais me influenciou gastronomicamente. As favas, as ervilhas, o azeite, os coentros, em suma, todo este padrão mediterrânico cresceu comigo. É engraçado como nunca tinha pensado nisto, mas é muito provável que estas influências me tenham impactado e tenham, também, decidido o meu caminho.

 

“É a docência que dá sentido à minha investigação.”

 

Doutorou-se em Biomedicina (2012) pela Universidade do Porto e pela Université Paris-Sud XI. Como surgiu a oportunidade deste doutoramento?

Quando terminei a licenciatura comecei a trabalhar. Posteriormente, quando fiz o mestrado apercebi-me que aquilo que eu gostava, verdadeiramente, era de investigar. Sou muito curiosa! Tenho uma curiosidade científica que não se satisfaz. Para mim foi fácil perceber que era a investigação que ia permitir aliar a minha curiosidade constante à vontade de encontrar respostas às questões que eu levantava. Acabei por me despedir e em 2006 inicio o meu doutoramento com o IPATIMUP, atual i3S, para desenvolver o tema centrado na oncologia, por forma a compreender o impacto que a dieta e os nutrientes têm na prevenção. Acabei por estar envolvida num doutoramento em cotutela, porque acabei por fazer metade do Doutoramento em Portugal e a outra em França, na Université Paris-Sud XI. Tive a sorte de investigar no Instituto Pasteur, um instituto onde as possibilidades de investigação são imensas. Foi uma experiência muito enriquecedora!

 

“As recomendações nutricionais, com as crises climatéricas que temos, têm que ir mais além do que meramente a promoção da saúde.”

 

Qual é a importância da docência na sua vida profissional?

É a docência que dá sentido à minha investigação. A investigação só tem sentido se for partilhada, porque de outra forma é estéril. E desta partilha eu aprendo muito porque os alunos fazem perguntas e colocam hipóteses que me fazem sair da zona de conforto e porque me fazem pensar sobre outras perspetivas. É esta dialética que realmente me motiva.

 

Para além dos vários conhecimentos científicos e técnicos que partilha com os seus alunos o que é que lhes tenta, essencialmente, transmitir?

Tento ensiná-los a pensarem por eles próprios e a terem espírito crítico. Independentemente da área onde estejam, isto é mesmo o mais importante. Gostaria que todos nós tivéssemos mais espírito crítico; incutir essa mentalidade nos jovens é muito crucial.  

 

Os seus interesses científicos incluem nutrição e modelação da inflamação, nutrição e cancro e o estudo da relação entre dieta e sustentabilidade ambiental. Apesar de serem temas diferentes, qual é o denominador comum entre todos?

Todos esses temas são muito diferentes, mas no final do dia, o que me interessa é a forma como o nutriente que está na minha comida vai influenciar a doença e promover a saúde e se isso puder ser feito de forma sustentável, melhor ainda! Hoje em dia não faz sentido promovermos a ingestão de alimentos, se sabemos que a produção desses, têm forte pegada ambiental. As recomendações nutricionais, com as crises climatéricas que temos, têm que ir mais além do que meramente a promoção da saúde.

 

“O nosso corpo precisa de tempo para ingerir e absorver os alimentos. Por exemplo, o cheiro é muito importante para iniciar o processo de digestão.”

 

Em que é que estudar Ciências da Nutrição na Escola Superior de Biotecnologia é diferente de se estudar noutro sítio?

Eu sou a atual coordenadora, mas vim depois de duas grandes coordenadoras que trabalharam imenso para que a licenciatura fosse aquilo que é hoje e, por isso, tenho o meu trabalho muito facilitado (risos). A licenciatura em Ciências da Nutrição da ESB tem uma grande ligação à indústria e isto é único desta casa. Os alunos que estudam connosco são desafiados não só por professores excelentes, mas também por pessoas que trabalham no terreno. Esta forte ligação ao mundo empresarial e à indústria dá aos nossos alunos ferramentas que os capacitam a encontrar soluções adequadas às necessidades atuais, porque não basta ser-se cientificamente e tecnicamente excelente, é preciso, também, saber-se vender o produto e adequar o produto numa cadeia de fornecimento alimentar. Um segundo fator que nos distingue é o forte pendor da investigação. Colocamos à disposição dos nossos estudantes o acesso à investigação desde o primeiro ano do curso, o que contribui para o desenvolvimento do seu raciocínio em termos científicos e académicos.

 

Como é que Portugal olha para a Alimentação? Estamos no bom caminho?

Em Portugal coabitam várias realidades e, por isso, é difícil definir uma média ou uma norma, mas se eu tiver de generalizar, diria que ainda temos um longo caminho a fazer. Já temos dado alguns passos importantes, como no aumento da consciência da necessidade de se reduzir o consumo de sal e de açúcar, por exemplo, mas na verdade estamos ainda muito longe daquilo que seria um modelo mais plant-riched e mais mediterrâneo, onde a refeição não só é um momento onde ingerimos alimentos saudáveis e sustentáveis, mas onde, também, convivemos com os outros, sem televisão ou outras distrações, e onde se partilham experiências. Ainda há um longuíssimo caminho a percorrer.

 

Não é só o que comemos, mas a forma como comemos …

Claro que sim e há estudos muito interessantes que falam sobre isso e que nos mostram como é diferente ingerir o mesmo número de calorias numa hora ou em vinte minutos. O nosso corpo precisa de tempo para ingerir e absorver os alimentos. Por exemplo, o cheiro é muito importante para iniciar o processo de digestão. Mas para tudo isto é necessário alterar o modo como comemos e como olhamos para as refeições.

 

A gastronomia portuguesa é compatível com uma alimentação saudável?

Claro que sim! A gastronomia portuguesa é uma gastronomia muito rica, embora tenha acabado por se ocidentalizar mais, fruto da globalização, tendo-se perdido alguns hábitos que importa retomar. É claro que comprar uma lata de salsichas é mais fácil que comprar um saco de favas ou de grão. Mas, tradicionalmente, a nossa alimentação assenta naquilo a que chamamos de uma alimentação mediterrânica, embora este conceito seja muito variável, porque a bacia do mediterrâneo é enorme e o que se come na Tunísia, na Argélia, no Líbano ou em Marrocos, não é o mesmo que se come na Grécia, em Espanha, em França ou em Portugal. Há alguns denominadores comuns: refeições em convívio, as bebidas são na maioria das vezes infusões, ou águas com sabores, onde a base alimentar é com cereais integrais e leguminosas e um bocadinho de peixe, muito pouca carne. Claro que este paradigma se alterou porque se modificou a forma como vivemos, preparamos alimentos e produzimos alimentos, sendo que o acesso aos alimentos era mais escasso. Mas devemos fazer um esforço para selecionar melhor aquilo que comemos e temos de retomar a introdução de mais leguminosas, hortícolas, cereais integrais, pães de cereais, a batata doce. São tudo produtos excelentes que têm uma razão caloria-nutriente interessante e que nos dão, acima de tudo, mais saciedade e mais nutrientes.

 

“A tendência do futuro da educação é precisamente dar ao futuro profissional uma educação plural.”

 

Como é que se educa para a alimentação?

O primeiro passo começa em casa com a alimentação que os nossos pais e família nos dão. A família tem de estar envolvida neste processo. O truque é aproveitarmos todo o nosso espólio gastronómico e sabermos tirar o melhor partido dele. Para além disto, o pedido de ajuda de um profissional é importante. Muitas vezes basta uma consulta, ou duas, para se reorientarem as escolhas alimentares.

 

Coordena, atualmente, o ACT-19, um projeto multidisciplinar que pretende promover o bem-estar junto dos estudantes da UCP. Em que é que consiste?

É um projeto multidisciplinar que tem como motivação ajudar os jovens alunos no desenvolvimento de capacidades para saberem lidar com o stress e com a ansiedade. Sentimos que os nossos alunos têm poucas ferramentas sobre como lidar com situações causadoras de stress e de ansiedade: o luto de uma perda, o insucesso escolar, o divórcio, o término de uma relação, as incertezas da vida. Esta é uma geração que se viu pela primeira vez privada de socialização e convívio, com restrições sem precedentes, e a sua saúde mental tem de ser cuidada e protegida. Neste projeto, usamos a multidisciplinaridade, as artes, a meditação, um maior conhecimento sobre as sua próprias emoções e pensamentos, como estratégia de capacitar os nossos estudantes com ferramentas que os ajudem a agir perante os desafios da vida, as incertezas da vida.  

 

“O ioga ajuda-me a ser capaz de responder com mais tranquilidade à minha família e às exigências do meu dia a dia.”

 

A multidisciplinaridade é a chave deste projeto?

Sim, somos 13 pessoas de áreas muito diferentes como a nutrição, a psicologia, as artes e entre outras. Acreditamos que a educação de futuro tende a ser mais plural. No campus da Católica no Porto vive-se essa multidisciplinaridade que é tão benéfica para os alunos e também para nós docentes e investigadores. O ACT-19 é uma grande prova disso.

 

Como é que gosta de ocupar os seus tempos livres?

Sou mãe e tenho a minha família e, por isso, dedico-lhes todo o meu tempo. Fora isso, gosto de ler, cinema e pratico Iyengar ioga, que me dá muita tranquilidade e paciência. O ioga ajuda-me a ser capaz de responder aos desafios e às exigências da minha família e às exigências do meu dia a dia, ajuda-me a pôr tudo em perspetiva, não numa perspetiva de relativismo irresponsável, mas antes de aceitar o que não se pode mudar e que praticamente tudo é contornável, quando estamos em paz. Tento viver com alegria e cultivar esta forma de estar, sentir e viver junto da minha família.

 

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17-03-2022